O Bicho
“Vi ontem um bicho. Na imundície do pátio.
Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem
cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não
era um rato, o bicho, meu Deus, era um homem.” (Manuel Bandeira)
16.02.2016
Quem visita as
periferias da humanidade, os becos, as favelas, certamente já se deparou com
realidade semelhante a do poema de Manuel Bandeira: no corpo esquelético das
crianças ou em suas barrigas cheias de vermes, nas filas e nos corredores dos
hospitais onde a dor e o desespero se manifestam nos rostos dos doentes, nas
vítimas das drogas, do preconceito, da fome - de pão e de atenção -, e da
indiferença que é uma das 15 doenças elencadas profeticamente pelo Papa à Cúria
Romana em 2014 e, talvez, sejam doenças de toda sociedade.
Este bicho-homem, ou
homem-bicho, faz-me lembrar do louco do Evangelho que vagava correndo, gritando
pelos cemitérios, pelas ruas, pela vida (Mc 5,1-20); vida devolvida a ele por
Jesus que, com misericórdia, volta sempre o seu coração preferencialmente às
situações de miséria do mundo e das pessoas: para a pobre e sincera oferta das
viúvas, para as ovelhas tresmalhadas, para as moedas extraviadas, para os
filhos perdidos, para os samaritanos caídos nas beiras das estradas deste
mundo, para os cegos bartimeus, os paralíticos de Betesdas, as filhas dos
Jairos, os filhos das viúvas de Naim e desta América Latina, e do Brasil, e do
Piauí, e das nossas cidades, e das nossas famílias, e de nós mesmos.
- Oh homem! Quem te transformou
em ‘‘bicho’’? Quem te jogou nos porões da vida? ‘‘O lucro e a ambição do
capital, o poder do latifúndio’’, nos lembra um dos hinos da Quaresma na
Liturgia das Horas, a religião instrumentalizada para favorecer os poderosos
como verificou o Profeta Amós à seu tempo e de cujo livro é retirado o lema da
Campanha da Fraternidade deste ano, o
jejum feito enquanto se cometem injustiças como denunciou o Profeta Isaias, ou até
os sacrifícios hipócritas e as vezes hediondos, que ao invés de agradar a Deus
lhes são detestáveis: ‘‘Quero misericórdia e não sacrifícios’’, é o imperativo de
Jesus no capítulo 9 do Evangelho de Mateus, o cobrador de impostos.
Quantas religiões,
seitas, movimentos que são hoje Templos de Betel, que servem às estruturas
caducas e que pregam uma obsoleta cristandade, de excessiva moralidade e que, assim,
fortalecem as instituições que promovem as injustiças e as opressões, quando,
não raras vezes, se tornam, elas próprias, fontes de injustiças e seus líderes
lobos vorazes ao invés de serem pastores que apascentam o rebanho com
conhecimento e prudência, conforme Jr 3,15? Rios secam quando deixamos de
praticar a justiça e o direito (Cf. Am,
5,24).
- Oh Deus, onde estão
os teus profetas? Onde estão os Pedros, os Antônios, os Hélders, as Margaridas,
as Dorothys, os Josimos? Os homens profetas e os profetas homens? Os homens
espiritualizados, humanizados que como Francisco, o Santo de Assis, e
Francisco, o Santo Padre, nos chamam, a todos, a sermos Misericordiosos como o Pai e entusiasmados (cheios
de Deus/Theos) a construirmos o Reino e sua justiça, pois a outras coisas nos
virão como acréscimo(Mt 6,33), como que “por atração” nos lembra Francisco: “A
Igreja cresce por atração e não por proselitismo.” “Procurar, amar e atrair”
(S. Bernardo de Claraval).
Neste Ano Santo da Misericórdia,
Senhor, volta nosso olhar aos que estão como fome, com sede, nus, estrangeiros,
presos, doentes, solitários, pra estes homens “feitos” (hechos) bichos. Que
sejamos uma Igreja de portas abertas a estas realidades. Que hoje voltemos
nossos corações, almas, energia e trabalhos àqueles que, à época, seguiram
Jesus: um bando de publicanos, pobres, pecadores, prostitutas, marginalizados,
doentes, pessoas que eram desprezadas pelas classes dominantes de Israel; que
os excluídos de hoje provoquem em nós uma verdadeira Metanóia (conversão) quando
os encontramos, numa vivência real da misericórdia e do pastoreio, em
semelhança à ação de Deus que veio e vem até nós para nos encontrar em nossas
fragilidades e limitações.
Senhor, que diante do
Alzheimer espiritual, nas palavras de D. Leonardo Steiner, um “progressivo
declínio das faculdades espirituais”, não esqueçamos que estais presente no
injustiçado, no faminto, no explorado; que não nos esqueçamos que nossas ações
de solidariedade a eles – esmola, caridade, atenção, respeito, presença,
manifestam e revelam o vosso próprio rosto misericordioso (Misericordae
Vultus): “Onde o amor e a caridade, Deus ai está.” Que esta verdade não caia no
ostracismo de nossas vidas; que nossa gratuidade aos pobres seja como a bela
imagem da fonte citada por D. Leonardo no retiro do clero, que nem mesmo sabe
que se dá, mas...sempre se dá”. Por fim, não permitamos que nos roubem a
gratuidade e a misericórdia.